Regras para visitar a Feira do Livro
Há muitas modalidades para visitar a Feira do Livro. Há quem vá para passear e até compra um ou outro livro casual, há quem vá à descoberta e se deixe seduzir incautamente, há quem vá à procura de raridades e só passa pelos alfarrabistas, há quem vá todos os dias e tem a força de vontade para só comprar os livros do dia, há quem vá só na Hora H, há quem vá para passar o dia e assiste a tudo e participa de tudo, e há tantas outras modalidades que nem vislumbro. Não sei qual é a vossa. A minha é um verdadeiro ritual cheio de regras, que obviamente são para quebrar...
Como a Feira do Livro acontece habitualmente no mês do meu aniversário é sempre uma boa desculpa para me perder. Este ano tive de arranjar outra desculpa igualmente convincente, os aniversários dos amigos.
Regras que tenho vindo a compilar ao longo dos anos para este evento:
- esquecer todos os livros comprados nos meses anteriores, para não cair na falácia do, ah este ano já comprei muitos livros. Isso é irreal, os livros nunca são demais, as casas é que eventualmente são pequenas. Neste campo nunca esquecer o conselho de Nassim Taleb, os livros não lidos são muito mais importantes que os livros lidos, convém ter sempre uma boa reserva.
- selecionar das listas de livros, vulgo wihslist, dos livreiros online, aqueles que quero mesmo mesmo comprar e que vai saber melhor com preço de feira. E, fazer uma lista, claro, anotando o stand para depois fazer uma rota de acordo com o mapa da feira. Esta regra tem de levar em conta duas ou três adendas, o peso, ou seja, convém ter uma noção dos limites do corpo, não esquecendo que apesar da aparência os livros já foram árvores. E o espaço, porque todos sabemos que as estantes não são roupeiros extensíveis a Nárnia. Reduzimos a lista a um número simpático para os ombros, para a carteira e pensando que uma futura mudança de casa ainda está longe de acontecer.
- estudar o site da feira, saber quais os livros da lista que são o livro do dia e em que dias. Neste caso dá sempre jeito ter um ou outro amigo, ou uma mãe, que vão à feira em dias diferentes e que até nem se importam de passar naquele stand em particular para trazer aquela relíquia que está com um preço imperdível... este ano aconteceu com Yuval Noah Harari e Olga Tokarczuk...
- ver a agenda e perceber quando vão estar aqueles autores que gostaríamos mesmo de ter um livro assinado. Este ano a escolha entre Richard Zimler e José Eduardo Agualusa não foi fácil. Lá me decidi por Agualusa.
- convém espreitar como vais estar o tempo nesse dia escolhido, que será o único. Sou perita em escaldões de feira! Levar calçado confortável e água, mesmo que pareça não estar calor suficiente.
- estabelecer um plafond, que não deve ser rígido, ou seja, um limite máximo, mas com um espaço resvalescente.
- ir com amigos que partilhem a mesma insanidade, a típica de uma introvertida que perante um ou outro livro tem surtos de extroversão perfeitamente desadequados. Estes amigos devem ser escolhidos a dedo. Devem ser pacientes, saber que estás a mentir quando dizes, este ano não vou exagerar, mas ainda assim terem a confiança de que és boa pessoa.
- tentar seguir a ordem da lista. Há sempre aquele que queremos mesmo e convém começar por esse, Pat Barker O Silêncio das Mulheres, foi este ano o eleito primeira compra.
- a lista deve ser heterogénea, não esquecer um ou outro título de psicologia, filosofia, sociologia... este ano foi Zygmunt Bauman e Byung-Chul Han.
- o espaço resvalescente está guardado para os descontinuados e para os inesperados. Ainda foram uns quantos, Ivan Turguéniev, Oliver Sacks, Eurípides, James Hillman, Marion Woodman e Verena Kast.
- quando se atinge o limite de peso e monetário, impõe-se uma paragem para descansar, beber água e lanchar para repor as forças, saborear os títulos e aquelas relíquias inesperadas, Verena Kast, e assim se vai fechando o espaço feira do livro dentro da mente, para poder continuar não nos deixando enganar pelos sussurros das bancas.
O ritual Feira do Livro tem ainda um outro aspeto que me agrada, o entabular conversas preciosas com quem gosta mesmo de livros. Sim, porque na feira quando perguntamos por um autor e percebemos que nos responde alguém que sabe de quem estamos a falar é toda uma intimidade por momentos partilhada que raro se encontra nas livrarias, onde por norma é qualquer coisa como, deixe-me ver na base de dados, pode soletrar o nome por favor... e por estes momentos vale a feira, mesmo quando o livro que estamos à procura estar há muito esgotado, mas por erro aparecia na lista da feira como existente, Giorgio Agamben.
O ritual só termina em casa, quando retiramos os livros dos sacos, os tocamos e observamos, lemos as sinopses e os colocamos pela ordem em que acreditamos que os vamos ler, enquanto olhamos as estantes com olhar de Marie Kondo, e pelo canto do olho os espaços vazios a projetar a próxima estante.