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Palimpsesto

"Para sobreviver é preciso contar histórias“

30 Dez, 2019

O Gigante Enterrado

“Este livro não sai da cabeça, recusa-se a ir embora, força o leitor a voltar a ele... excecional.” Neil Gaiman

Ishiguro é um escritor de profundidade que intencionalmente nos puxa para as profundezas do sentir, como se percorrêssemos pela primeira vez alamedas de emoções, com a mesma curiosidade de um turista em terra alheia, mas onde (não) encontramos referências suficientes e, a dada altura, já não sabemos como voltar e mergulhamos ainda mais, até que por fim se instala como uma inevitabilidade, uma sensação, forte, que teima em ficar, por muito tempo, até que nos apropriemos dela, como uma memória.

Este livro é uma surpreendente alegoria em campo aberto. Vasto como a dimensão arquetípica, em vez da intimidade a que nos habituou de um personagem só. Aceder ao conteúdo com o propósito de lhe encontrar um propósito é uma tarefa quase ingrata. O Amor dir-se-ia uma possibilidade expectável. Mas, tudo nele é símbolo, tudo nele é amplo e vasto como o sonho da humanidade e as suas nuances temporais. Os personagens centrais, o casal Axl e Beatrice, trazem em si o significado de carruagem e caminhante. E efetivamente eles caminham, à procura do filho que ambos acreditam vive há muito noutra aldeia. E a decisão de tal peregrinação deve-se a lhes ter sido retirada a luz. Não só a luz lhes foi retirada, mas a memória. Vivem-se tempos de esquecimento, o passado dilui-se na névoa e ninguém questiona, ninguém se apercebe do esquecimento. É uma conveniência bem vinda para apagar a dor da consciência que começa a emergir no conflito entre duas crenças. Permanecer ou mudar?... O caminho é longo e duro. Axl e Beatrice são já velhos e estão cansados.

Todos os personagens com que se cruzam são dúbios e duais, em todos fervilha a força oculta do bem e do mal, da luz e da sombra, e da escolha a cada momento. Sir Gawain, na sua armadura colada ao corpo, oscila entre o herói da Távola Redonda e o cavaleiro errante e quixotesco. É ele quem desfila o leque de escolhas, permanecer ou mudar, honra ou reconhecimento, força ou vontade. Revela a sabedoria, o compromisso e a redenção, mesmo quando se depara com as três velhas parcas, que vituperam do seu ordálio. Já os monges estão divididos num antagonismo que agoniza em jaula de carne exposta aos corvos. Jonus, sugestiva alusão ao bifronte, é o mais sábio dos monges, devorado pela “memória” e “pensamento”. O barqueiro tem a sua função, e não lhe cabe julgar, ainda que o óbulo que deve exigir seja a Verdade. O herói, Master Wistan, e a criança Edwin, são os que não se deixam tocar e o véu não lhes tolhe os sentidos do tempo. Não têm laços, mas uma demanda.

E Querig? Querig dorme, dorme e sonha o sonho do mundo, e o seu bafo é o véu que cobre o sonho... velho como o tempo, arcaico e fantástico, um sonho novo, um mundo novo, uma nova ordem... Querig ou Querigma? É do interior da terra, na força ctónica desse símbolo demoníaco, da força telúrica do seu despertar, do seu fogo, que tudo devora, que a mensagem é passada, o espírito em forma de névoa. E quando não for mais preciso, esse véu que se dissipa, revela a verdade no coração dos homens.

E quando a verdade já não for mais oculta, ainda me amarás?

Esta é uma história sobre a Grande Viagem.