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Palimpsesto

"Para sobreviver é preciso contar histórias“

16 Abr, 2020

A Mulher da Areia

Foi assim que, em consequência de se ter concentrado a desenhar na sua alma a imagem da Areia-que-desliza, o homem por vezes tinha como que sentido escoar-se o mais profundo do seu ser, dominado pela Ilusão.

Kobo Abe

Certo dia desapareceu um homem. Talvez não fizesse a menor diferença. Vivia sozinho e ninguém sabia da sua intenção de viajar para aproveitar o feriado. De Tóquio a Tottori a distância media-se em pensamentos sobre o alcance de um hobby. Podia a Cicindela-japónica-Motschulsky, mais conhecida por cicindela-de-jardim, mudar definitivamente a vida de um homem?

O silêncio amplo entre o céu e a areia, a ausência de referências espaciais, aliviam o peso do calor e estimulam o prazer da solitude. Liberdade, uma extensão a perder de vista. A ilusão, uma mancha, um reflexo aquoso, como uma miragem... O horizonte é sempre mais além.

É um livro lento, denso. Um ensimesmado professor, que por uma vez deixa a grande cidade para se encontrar com o seu desejo de reconhecimento, vê-se ardilosamente apanhado numa teia kafkiana de acontecimentos tão inesperados quanto absurdos, urdida por aquelas pessoas, simpáticas e prestáveis, que ali viviam. Guarida por uma noite era só o que ele precisava, tão somente, não por uma vida. Mas ali, onde o mundo acabava e eram raros os visitantes, carecia-se de presença.

A primeira noite na casa daquela mulher fora uma necessidade. Nunca vivera com uma mulher e não o tencionava. Mas esta não fora uma escolha, aconteceu-lhe. Para ela já não era a primeira vez. Já lhe tinha acontecido outro homem antes, e até um filho, mas tinham morrido, soterrados pela areia. Não podia haver descuidos. Era preciso escavar toda a noite, para as casas não serem engolidas. De dia era preciso sossegar, com precaução, de máscara, para não respirar areia. E de novo escavar, sempre, para não desaparecer. A areia é insidiosa. E ela, a mulher, também o era.

Talvez alguém desse por falta dele, e o procurasse. Ou talvez não acontecesse assim. Porém, fitava o tempo com o propósito de se libertar. O seu confinamento na cidade era uma escolha. Este era uma imposição, que veio sob a forma de ajuda. Fora enganado! Quem eram aquelas pessoas? O que queriam dele? E aquela mulher... a mulher da areia. Era acolhedora, falava-lhe de forma quase familiar, cozinhava para ele.

O desespero instala-se como um despertar. Fica-se vivo de repente. Ou luta-se pela vida que ainda não se viveu, como uma revelação. E emerge o instinto e a necessidade de o combater, ao corpo. Um combate existencial contra o tédio da morte.

Ela é mansa, dócil sem expetativas. Ama-se o que se pode, o que a vida traz. Estava disponível. Ele em luta dentro da sua prisão de lucidez, cede. O sexo é tantas vezes inoportuno! Naqueles momentos em que menos faz sentido... Uma tentativa de estar vivo, de não sucumbir à incredulidade. Ele cede por pena, por enfado,... o calor. E está bem assim, ela não pede mais. Naquele lugar nunca houve mais para esperar. Mas o sexo não os liga, é apenas um acontecimento de se manterem vivos.

Planear a fuga é única forma que verdadeiramente o leva a conhecer aquelas pessoas. O não fazer instala-se... o tempo deixou de passar, já nem fazia sentido. Asfixia era o estado em que se encontrava a alma. O hábito apaga os pontos de interrogação e aplana a existência. Um espelho, para visitar quem se é, é fundamental em tais circunstâncias, e um rádio, para poder continuar a acreditar que lá fora, para lá das dunas, existe vida.

A alma só se apazigua com as circunstâncias quando assume tê-las escolhido. Mesmo que isso seja uma grande farsa. Mas para atingir é preciso lutar, negar o inevitável, rejeitá-lo e repudiá-lo com veemência. Um homem pacato enclausurado pode ser a mais cruel das criaturas. A repulsa, a raiva, a injustiça, por um lado torna o sexo mais vibrante, por outro revela um calor que já não é apenas uma circunstância ambiental, mas um acontecimento interno, que enriquece a função da personalidade, e que por momentos lhe dá o poder de escolher.

A incrível capacidade de adaptação dos insetos aos ambientes mais remotos, mais áridos, mais insalubres... os seus hábitos de acasalamento... 

A adaptação ao cinema de A Mulher da Areia é uma arrojada, e bem conseguida, paleta sensorial, que vai adensando a fogo lento, o sentimento de agonia. Na verdade, livro e filme são igualmente exasperantes. Convém ler o livro primeiro.

A Mulher da Areia

É surpreendente quando um livro com 60 anos parece ter sido escrito ontem! 

Alguém mais leu este livro? ou viu o filme? Comentários e partilhas são bem-vindos.

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