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Palimpsesto

"Para sobreviver é preciso contar histórias“

… para uma análise existencial.

Guimarães Rosa habituou-nos a uma imagética sertaneja cheia de imprevistos sobrenaturais e mágicos, intuídos pela beleza impiedosa da paisagem do Brasil central. Os pequenos gestos agigantam-se na matéria de que são feitos os homens deste lugar. Neste conto particular, o impacto é imediato e concedido pela figura paterna. A sua decisão surpreendente, coloca-nos perante uma angústia da existência que é a angústia do filho. E é sobre esse filho que recai esta análise.

Ele é um sujeito simples, rural, que nasceu em uma família tradicional, igual a tantas outras, o pai, a mãe, uma irmã e um irmão. Do pai, como homem “cumpridor, ordeiro, positivo”, não se esperam grandes feitos. Seguia a ordem natural das coisas e apresentava quotidianamente o que dele se esperava. Era apenas ensimesmado, quieto. E, por ser tão cumpridor, a sua decisão toca a existência do filho com a ênfase de uma experiência indelével, um marco, um ritual de passagem que lhe exige uma decisão.

No momento do presente-narrativo, este homem-filho revela-se um homem atormentado pela culpa. Está a envelhecer, o corpo a dar-lhe sinais de cansaço, de desgaste, e nele permanece a ausência do pai como um movimento perpétuo que lhe aperta o coração “Sou o que não foi, o que vai ficar calado”.

Enquanto narrador, este homem não se nomeia, conta a sua história fazendo uso da primeira pessoa do plural do pronome possessivo, sendo a dissolução na fratria a criação de uma identidade de um Nós-sujeito. Ao enunciar o evento da partida do pai, coloca-se na condição de viver nesta terceira margem alienante. O pai, no meio do rio entre duas margens, fez emergir essa terceira margem, quando à consciência do filho se revela a forma da canoa, comprida como uma linha perpétua, que dividia o rio ao meio, tornando impossível ligar as duas margens. Esse foi o momento em que a sua consciência se tornou consciência de algo, o pai empreendeu um plano que promoveu a rutura do mundo tal como o conhecia. O seu ser-no-mundo foi modificado pela emoção de se surpreender e a sua consciência emocional tornou-se consciência do mundo.

Este pai, sem nome próprio, remete-nos não para a pessoa, mas para a função paterna, que liga o simbólico e o real, possibilitada por via da função materna, que disponibiliza a dimensão espácio-temporal para o em-si da criança. Esta rutura, coloca o jovem no dilema da escolha, ficar ou seguir. E, ainda o pai não partiu, e já ele-criança se encontra na terceira margem, entre a mãe que lança o ultimato ao pai, o pai que guarda a sua decisão no silêncio, e ele menino, que dando um passo em frente, percebe erradamente um convite no olhar do pai, pelo qual é recusado, e devolvido à constância da vida tal como ela deve ser vivida. Este homem, que se fala no plural para não se diferenciar, tornou-se naquele momento um menino dividido, parte em dissolução familiar, parte na sombra do pai e na sua ausência. É nessa sombra que se apercebe do rio, da sua grandeza, da sua profundidade e do seu silêncio. Refugiou-se ele próprio na penumbra sombria da tristeza, incapaz de transformar a estrutura do mundo. Ele toma para si esse lugar entre uma margem e outra, sem julgamento, entre o pai e a mãe, e faz esse caminho invariavelmente, cuidando que o pai não passe necessidades e suportando compreensivamente a postura da mãe.

A sua escolha inicial é a de ser esse elemento que liga uma margem e outra. Alimenta o desejo de ter o pai de volta, sabendo que tal não vai acontecer. O desejo, enquanto falta, é um vazio que tende a perpetuar-se, em um pai-objeto-imaginado, e não o ser-em-si do pai. Este homem no meio do rio, livre no seu projeto de ser-em-si-para-si, não é o pai desejado, mas a representação da falta desse pai, que em última instância é a possibilidade de manter a infância, libertando a criança da temporalidade.

A surpresa daquela decisão, não comunicada nem justificada, quebrou a coesão familiar. O locus externo da família e vizinhos, procura encontrar uma resposta concreta e satisfatória, seja por via da doença física ou mental, ou de forças sobrenaturais. Mas, aquele menino sabia que só o pai podia responder pela sua escolha, nessa altura ele compreendeu que o pai era livre e que havia outras possibilidades para além daquela que ele próprio vivia.

Entre uma margem e outra o menino se foi fazendo homem, alimentando a falta, que não era mais desejo, e que se foi tornando culpa. Se o pai era livre, e por ele anteviu a sua própria liberdade, não a tomou para si. Agora assombrava-o a falta de afeto e de preocupação, que o pai devia ter para ele e para com a família. Para com ele, afinal, que lhe era dedicado, e o pai nem se aproximava.

O luto familiar foi iniciado pela irmã quando ela própria se tornou mãe. Choraram juntos, abraçados, e abriram espaço para seguirem as suas vidas. Deixaram a fazenda e apenas um ficou, “Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei”. Esta afirmação inaugura uma conduta de má-fé, negando a sua condição de liberdade, desculpando-se com o Outro, o pai imaginário, e a sua pretensa dependência. Esta cegueira fá-lo permanecer na falta, e no mal-estar, que o faz utilizar o Outro para totalizar a sua “totalidade destotalizada”. A devoção ao pai da infância e à necessidade da permanência que o sujeito foi demonstrando, diz-nos que, o seu para-si elegeu o passado e o seu projeto rejeita a passagem do tempo, permanecendo numa fuga que irá recorrer a toda a má-fé possível, de forma a manter com o passado uma relação de fidelidade.

A culpa pesava-lhe por dentro, secando-lhe o corpo e turvando-lhe a perceção, “Sou o que não foi, o que vai ficar calado”. A culpa é sempre perante o outro, mas que outro é este? O pai? Porque fugiu quando disse que ocuparia o seu lugar? A culpa é sempre acompanhada pela impotência e por isso é irreparável e impossível de ser desfrutada. O para-si, com pleno conhecimento da sua inutilidade na história que conta, de si mesmo com o outro, resigna-se na espera da morte do outro. Dessa forma a culpa não é mais que a relação de ódio ao outro, o qual desistiu de utilizar no sentido de reaver o seu em-si.

Esta é uma história que pode ser a de qualquer pessoa no mundo, por isso os seus personagens são inominados. Fala-nos da má-fé, que em Sartre é um conceito que remete para a inautenticidade.

Nela encontramos um desfile de mitos e símbolos arquetípicos. A começar pelo rio, que Heráclito propôs como símbolo da impermanência, simboliza a vida que corre, entre duas margens, fixas. A permanência no meio do rio, é uma forma de se eternizar, de permanecer evitando o envelhecimento. A referência à eternidade, como forma de fixar o tempo, ou da inutilidade da morte, é ainda assim um projeto, uma escolha, que uma vez feita é impossível de demover. Essa escolha coloca em perspetiva todos os outros membros da família, da mesma forma, eventualmente como quando alguém próximo morre. Mas, neste caso, o insólito é este homem que no meio do rio não é alma, mas barqueiro. Não se pode dizer que não tivesse o óbulo para pagar a travessia, pois a canoa era de valor superior. Permanecer no meio do rio não seria certamente a forma mais eficaz de libertar todos os sonhos e desejos, pois este é o rio São Francisco, e não Aqueronte ou o Estige, o rio da invulnerabilidade.

É ainda uma história que evoca o absurdo da vida e a falta de sentido, apenas possível de se realizar em-si-para-si. Sísifo, que representa esse absurdo da existência, está morto, sendo uma referência clara do em-si que não realiza o seu projeto. Mas Sísifo, tal como outros condenados, tem um momento propício à reflexão, que eventualmente lhe permitiria encontrar a forma de fazer a sua pedra rolar pelo lado oposto do monte, quando Orfeu passa tocando a sua lira para resgatar Eurídice. Nesta história, Sísifo é símbolo de todos os que, atónitos, se surpreendem com a demanda daquele pai e a sua teimosia de se permanecer quieto no meio do rio. É um absurdo, talvez, a permanência, mas o filho, tal como Orfeu, não conseguiu conter-se de olhar para trás e perder assim a possibilidade de trazer à vida, à consciência, o ser-para-si, a sua Eurídice.

Por fim, esta história fala-nos de alienação como o último reduto da má-fé. O homem é um projeto de ser que se realiza através do Outro, com o Outro, e em contexto. É através da singularidade do indivíduo, que o grupo se volta sobre si mesmo, e se encontra singular e universal, e esse percurso, entre uma margem e outra, entre o grupo e o ser-em-si, se estabelece o projeto pessoal que dá sentido à existência. Tal como a Electra de Sartre, que presa no passado usa de todos os subterfúgios da má-fé para permanecer ela própria naquele lugar, Argos, onde irá ocupar o trono da mãe, que odeia, mas que nunca foi capaz de abandonar.  A culpa, tão densa e profunda que este homem carrega, é a imagem das moscas gordas que sugam os habitantes de Argos, e que possuem Electra fixa num passado impossível de alterar.

 

 

Referências: Camus, A. (1961). O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Livros do Brasil.; Lacan, J. (2005). Nomes-do-Pai. Jorge Zahar Editor.; Martinho, J. (1990). O que é um pai? Assírio & Alvim.; Rosa, J. G. (2002). Primeiras estórias. Editora Nova Fronteira. (Publicado originalmente em 1962).; Sartre, J. P. (1965). As Moscas. Editorial Presença. (Publicado originalmente em 1943).; Sartre, J. P. (1997). O ser e o nada. Editora Vozes. (Publicado originalmente em 1943).; Sartre, J. P. (2002). Questões de método. Crítica da razão dialética. Tomo 1 Teoria dos Conjuntos Práticos. DP&A Editora Lda. (Publicado originalmente em 1960).; Sartre, J. P. (2006). Esboço de uma teoria das emoções. L&PM Edições. (Publicado originalmente em 1939).