Uma solidão demasiado ruidosa
Dei por mim a olhar para a estante, perdida nos livros, sem pensar em nada. Reler algum dos que há anos repousam as lombadas na memória fugidia? Porque não... apesar de livros por ler sobejarem sempre. Sobressaiu-se Bohumil Hrabal, na estante há 14 anos.
Voltei a lê-lo, ontem. Não pude deixar de pensar neste tempo que passou, onde estava há 14 anos e como a vida se transformou desde então. Outro exercício que gosto de fazer consiste em me sentir hoje nesta história tentando lembrar-me como me senti da primeira vez que a li. Pergunto-me se há quem faça este exercício, de se revisitar através dos livros, de revisitar os livros através de si.
O título fez-me tanto sentido nestes tempos que vivemos do #fiqueemcasa, e na nuvem ruidosa que nos entra pelos ecrãs e monitores através de tantas plataformas e canais.
Por vezes gosto de ler alto. Comecei a ler as primeiras linhas, e até gravei, com o pano de fundo das andorinhas de fim de tarde, mas não consigo colocar aqui um ficheiro de som.
“Há trinta e cinco anos que trabalho com papel velho e é essa a minha love story.” Há trinta e cinco anos é uma frase que se repete, ao longo de cento e catorze páginas, tantas vezes que é impossível não lhe sentir o peso. É uma divagação pelo tempo, pela vida, pelo sentimento de ficar para trás. Uma vida quase vivida pelos livros lidos, “Cada dia, dez vezes por dia, me surpreendo como me pude assim afastar de mim próprio. Assim estranho e alienado regresso também do trabalho, silenciosamente e numa meditação profunda caminho pelas ruas, passo pelos elétricos, pelos carros e pelos transeuntes, perdido numa nuvem de livros que encontrei hoje e que levo na pasta para casa (...)”. Esta passagem lembra-me que me fazem falta os espaços entre espaços, os caminhos tomados e o tempo que os preenche.
Hanta trabalha com uma velha prensa na cave de um depósito de reciclagem de papel. Todos os dias lhe chegam toneladas de papel para serem destruídas, mas ele perde-se nos livros, alguns que vai salvando e levando para casa, onde o espaço que lhe sobra já mal chega para se abeirar da cama. Lê-los vai lhe dando sentido à vida, “... tornei-me sábio contra a minha própria vontade... ”. O seu trabalho não tem fim, e está sempre atrasado. Como Sísifo, todos os dias, há trinta e cinco anos, o seu trabalho recomeça como se não tivesse avançado, todos os dias do mesmo ponto onde começara no dia anterior. A sua cave, em vez de esvaziar, parece sempre a mesma. O seu patrão exaspera-se “Hanta, onde estás? Por amor de Deus, larga os livros e põe-te a trabalhar.” O tempo, que estagna em não passar, acumula no monte de livros e papel, que aguardam pacientemente o seu escrutínio. Hanta deslumbra-se pela beleza, e deixa-se arrebatar. Göethe, Schiller, Hölderlin, Nietzsche, Hegel, Cervantes, Homero, Camus, Sartre.... salva-os e salva-se na sua escolha. Aquela escolha foi a possível para estar perto dos livros.
Hanta vive os seus dias na cave, sem luz natural, rodeado de papel e de ratos. Lá fora, à luz do dia, que ele nunca vê, a vida avança e o progresso chega sem que ele sequer desconfie da possibilidade. Uma cadeia automática, capaz de destruir uma quantidade muito maior de livros, é o futuro da sua profissão, e ele será substituído por jovens operários fardados, normóticos, sorridentes, superficiais, que trabalham sob a luz do sol. Desconhecem a beleza do “firmamento estrelado”, onde Hanta, no quadrado do seu saguão se detém a espaços, noite fora, na companhia de Kant e da sua Teoria Geral do Céu, saboreando-a frase a frase, lentamente, como quem saboreia um rebuçado.
Sabia que tinha ficado para trás no dia em que chegou à cave e lá encontrou dois desses jovens operários fardados, barulhentos e enérgicos. O seu tempo chegara ao fim. Na sua casa já não cabia sequer uma única folha, e salvar relíquias encadernadas era uma possibilidade agora ultrapassada. Restava-lhe juntar-se aos seus amados livros. Nesse dia escolheu Novalis para companhia e, com a mão que ficara livre, premiu o botão verde e deixou-se cair na velha prensa.